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Out07
Essa senhora não mora cá.
Laura Abreu Cravo
Não sei movimentar-me naquilo a que chamam piedade. Não sei sequer como funcionar nesse registo. Não tenho particular simpatia por animais bonacheirões ou criancinhas enternecedoras e gosto dos velhos porque a longevidade lhes deixa vincada na cara uma dureza respeitável. Não me comovo com aleijados ou vítimas de qualquer adversidade que se tenham acomodado à condição, não sou condoída da humanização dos touros, só não uso peles verdadeiras porque estão pela hora da morte (aceito os animais em vias de extinção como fronteira de bom senso) não me deixo enternecer por desistentes, gente que se abandonou. Admiro os que são capazes de, em circunstâncias desfavoráveis e sem heroísmos carnavalescos, devolver-se à normalidade e seguir em frente. Porque ultrapassar obstáculos e matar fantasmas sem, na medida do possível, maçar o próximo, é uma obrigação nossa. O incentivo e o carinho servem-se sem paternalismos e vitimização (em tudo redutores). Dito isto, é óbvio que abraço até fazer doer aqueles de quem gosto, partilho alegrias e tristezas com os meus e tento lembrar, a cada um, que o facto de me ser indispensável, não tendo peso no mundo, faz dele uma espécie de “humanidade gourmet”, com especificidades de paladar não acessíveis a todas as bolsas e não apreciadas unanimemente.
Mas quando me falam de piedade, a menos que se trate daqueles que perderam até a possibilidade de lutar, fico algures entre a perplexidade e o nojo. E fecho a porta. Essa senhora não mora cá.