A memória é o nosso grande educador. O repositório de um conjunto de experiências e vivências e, anos depois, a fotografia mental (mais ou menos nítida) dos efeitos causados pelo impacto dessas mesmas experiências e vivências. Por isso, nunca esqueço.
Quando alguém nos faz passar por uma experiência ou vivência que justifica a produção (e consequente reprodução), a espaços, de uma memória específica, essa pessoa passa a ser parte num processo que, em alguma medida, produziu uma alteração ao curso normal da nossa vida e à formação linear da nossa personalidade.
Depois daquele momento, somos tudo o que fomos até ali e mais o que acaba de ser inscrito no nosso registo mental por via daquele caso concreto. É esta a razão pela qual não admito, nem aceito, que as pessoas, em vez de assumirem total responsabilidade pelo impacto dos actos que tenham originado, tentem fingir que nada aconteceu e retomar as coisas (e a convivência) do ponto imediatamente anterior.
Quem me trama, também me educa e, um dia, eu vou querer agradecer os conhecimentos adquiridos. Podem apostar que vou.
Uma pessoa percebe que chegou ao limite da sua resistência emocional quando dá por si com os olhos marejados de lágrimas ao ver esta fotografia. Se isto resvalar para tecer loas à grandeza do homem, por favor abatam-me.
Vivi, até aos 17 anos, na Madeira. O Direito trouxe-me para Lisboa e lá ficaram, até hoje, os meus pais, tios, primos e amigos de uma vida inteira. Estava calmamente desinformada quando me ligaram, aqui de Lisboa, a dar conta do que se passava e a perguntar pelos meus. Nesse momento, começou uma epopeia de tentativas de telefonemas e de contactos que, de tão distantes da rotina, pareciam encenados, como que parte de uma outra realidade.
Os pais, imediatamente contactáveis, narravam coisas que julguei impossíveis. Fui acompanhando no twitter (já que, nas primeiras horas, poucos meios de comunicação convencionais davam informação regular sobre o que se estaria a passar). Contagem crescente de mortos, populações isoladas, pessoas que perderam quase tudo e uma sucessão de imagens que me esforço por reconduzir a locais conhecidos.
Sei que a casa de uma amiga no centro da cidade onde fizemos tantas festas e jantares tem agora vista e saída directa para um mar de lama; que o Teatro Municipal, que acolhia também um dos bares mais interessantes da noite madeirense, foi totalmente inundado e que o sítio onde a minha mãe trabalhou durante anos está inacessível até as águas baixarem.
A nossa casa é numa encosta, num bairro com vivendas cravadas nos rochedos. O acesso a essa zona faz-se subindo a rua 31 de Janeiro e descendo a 5 de Outubro. No meio de ambas, uma ribeira. Se traçarmos uma linha recta da varanda lá de casa para a rua 31 de Janeiro, perceberemos que o bocado de rua que lhe corresponderia ruiu e fez-se leito para a fúria da Ribeira de Santa Luzia. A padaria Marques, onde ia comprar pães de leite com o meu avô, já tinha fechado há muitos anos, mas, desta vez, nem o letreiro austero ficou para me lembrar deles a cada passagem.
Os madeirenses (e, imagino, qualquer pessoa que tenha nascido e vivido numa ilha) têm uma relação peculiar com a natureza. Admiram-na, na sua grandiosidade, mas aprenderam a negociar com ela. Amam o mar e respeitam-nos, como a um severo decano, mas vêem nele, ao contrário da claustrofobia que os não locais descrevem, o início de um imensidão de possibilidades.
Nunca ninguém tinha visto nada assim naquela ilha. Nunca senti nas pessoas tanto medo da água que, naquela ilha, está por todo o lado. Não há nada tão estranho como vermos as memórias de uma vida inteira cobertas pelo limo e pela desolação.
Esta casa andou votada ao abandono. Há um mundo do direito que nos absorve e sufoca (e, ao mesmo tempo, nos prova, a cada dia, que não poderíamos ser uma coisa diferente) e há a vida, essa amálgama de coisas boas e más e assim-assim. Adicionalmente, dá-se o caso de esta signatária ser umas das 15 pessoas em todo o mundo que teve problemas técnicos com um Macintosh. E comprar um PC é uma coisa muito difícil. Primeiro, porque, na sua larga maioria, são esteticamente ofensivos; segundo, porque a relação com os especialistas padece de deficiências prévias insanáveis que impossibilitam qualquer troca de mensagem frutífera.
Se não se não está disposto a pagar o preço de ser mártir, convinha não sair à rua trajando, com soberba e algazarra, um colete de explosivos.